OBS.: Se estiver com dificuldades de leitura, selecione antes com o mouse o texto que deseja ler e voilá!

domingo, setembro 19, 2010

Terço, o cordão da fé.


Terço, o cordão da fé.



Antes de eu entrar no ônibus, ela segurou minha mão e disse: - Leve o meu terço, com ele, não se sentirá sozinho. Quando estiver em tribulações se apegue a ele e reze como vovó ensinou, mas reze com fé que Nosso Senhor Jesus Cristo e nossa Santa mãezinha virão interceder por você. - Olhei para aquela imagem de Cristo crucificado, para a medalha de Nossa Senhora Aparecida, fechei a mão e agradeci. – Obrigado vovó! – Por mais que minha vózinha me forçasse a rezar o terço todos os dias com ela, eu não lembrava bulhufas de como se iniciava a reza de um terço. Todos os dias eu ajoelhava diante de umas imagens de barro, um monte de velas, e após minha avó, rezava o rosário, quer dizer, fingia que rezava. No primeiro dia ela me explicou com o terço a matemática das bolinhas, consegui reproduzir na hora, mas nos outros dias, me perdi quando meu olhar divagou entre as chamas das velas. Descobri que podia trapacear somente passando a mão nas bolinhas e mexendo os lábios, mas o ato de fingir que rezava o terço todos os dias me suscitaram idéias e assuntos que me levaram ao gosto pela filosofia. Por causa da filosofia que o terço, herança de família foi parar em minhas mãos. Para minha avó, filosofia tinha algo a ver com medicina. Tadinha! Foi na minha mudança para outro estado, com o intuito de estudar filosofia que minha avó o entregou. Iria me proteger dizia ela. Mal sabia ela, que para mim aquilo era apenas um cordão, embora não seja usado como.

Quando cheguei à cidade, pendurei o terço na cabeceira da cama no quarto do cortiço onde morava. Mais como uma lembrança da minha vózinha do que algum motivo religioso. Teve um dia que encontrei o cachorro da senhoria dentro do quarto, mastigando o raio do terço. – Maldito! – Tive que arrancar a força o terço da boca do sarnento. Salvei o terço, mas umas das primeiras bolinhas o pulguento arrancou e engoliu. Fiquei imaginando a cara de reprovação da minha avó quando visse o terço daquele jeito, para não ficar desfalcado coloquei uma bolinha parecida que tirei do meu chaveiro no lugar. Tudo bem, não era muito parecida! Era duas vezes maior que as outras, e era vermelha, enquanto todo o terço era transparente. Mas o que vale é a intenção. E Deus bem sabe disso. Tanto que uma vez o meu quarto foi invadido por uns elementos mais do que suspeitos, me escondi em baixo da cama. O meu medo foi tanto que me apeguei ao terço, e foi ai que entrou a providencia divina, só sei que de repente eu lembrei direitinho como se rezava o terço. O sinal da Santa Cruz, o Credo, um Pai-Nosso, após três Ave-Marias, um Glória-ao-Pai e a Jaculatória, os mistérios, em cada mistério, rezam-se um Pai-Nosso, 10 Ave-Marias, 1 Glória-ao-Pai e a Jaculatória, o quinto e último mistério após a Jaculatória, uma Salve-Rainha, o Sinal da Cruz e o Terço está encerrado. Quando abri os olhos já não tinha ninguém no quarto. Sorte ou não, resolvi andar com o terço dentro da carteira para onde quer que fosse. Já estava questionando a filosofia e sobre a real existência de Deus. Teria um simples terço o poder interlocutor com Deus? Até que um dia, a teoria foi quebrada por uma rápida prática de um pivete que levou a minha carteira junto com o terço. Daí, voltei a origens das minhas idéias. Ufa! A minha vida passou muito bem sem a presença daquele terço. Terminei meus estudos. Me formei. O tempo foi passando, vóvó sempre cobrando visita, mas o medo de contar a perda do terço foi sempre adiando minha viagem. Como poderia dizer que o terço, herança de família foi mordido por um cachorro e levado por um trombadinha? Era decepção na certa! Mas como a saudade da minha vózinha era grande, comprei um terço parecido para ludibriá-la. Afinal, ela enxergava mal. Mesmo assim estava com receio.

E a viagem não pode mesmo ser adiada, me ligaram da minha cidade, dizendo que vovó faleceu. Minha vozinha... morreu! Era a única família que eu tinha. Parti para minha terra, e ao chegar no velório, não consegui controlar a emoção de ver minha vozinha querida, morta naquele caixão. Sua face sem cor, aquelas flores, porém, o que mais me chocou, foi ver que entre as mãos cruzadas de vovó estava o terço, herança de família. E não, não era outro parecido, como o que eu tinha comprado, era terço mordido pelo cachorro e com o primeiro pai-nosso substituído por uma bolinha vermelha. Ela parecia me oferecer o terço novamente. Pensei até ouvir sua voz. - Tome mais cuidado de agora em diante. – Peguei o terço de suas mãos e coloquei o falso no lugar. E deste dia então passei a entender aquela famosa frase que sempre ecoava na minha cabeça, “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.”

Wanderson Rosceno